sábado, setembro 02, 2006

Jornalismo Colaborativo - Você faz a notícia


Como funcionam os sites Digg.com e OhMyNews – onde o cidadão comum é o jornalista – e qual é o real poder deles

Renata Leal, Revista Época, 14 de agosto de 2006

Foto: Operário. Kevin Rose posa para fotos com uma pá, alusão ao nome do site. Dig, em inglês, é "cavar". Aos 29 anos, ele já conseguiu US$ 60 milhões

A vida de uma redação é agitada. Dezenas de profissionais apuram, escrevem e editam textos sobre o que julgam mais importante para o leitor. Repórteres vão à rua, fazem entrevistas e escrevem reportagens. Elas depois passam pelo crivo dos editores antes da publicação. Assim funciona o jornalismo clássico. Ou funcionava. Pois a internet começou a transformar essa realidade.

Entre no site Digg.com e veja como são as coisas ali. Qualquer internauta pode atuar como editor e estabelecer o que é mais ou menos relevante a partir de textos prontos. Do nome - dig, em inglês, quer dizer cavar - vem a missão do site: selecionar (ou escavar) as notícias que recebem pouco espaço na grande mídia. Em vez de mandar links aos amigos, os diggers enviam ao site, com comentários.
A página de entrada é formada pelos títulos mais populares entre os visitantes. Se eles não gostam de um link, podem "enterrá-lo" e afastá-lo da página principal. Em cada notícia há também um espaço para o leitor comentar e criar fóruns de discussão. Mais de 1 milhão de pessoas passam pelo Digg.com diariamente, seja para ler, enviar notícias ou simplesmente votar. Com isso, ter um link no Digg se tornou um bom negócio também para os sites da mídia tradicional, pois a audiência aumenta significativamente.

O Digg.com, avaliado em US$ 200
milhões, já é o 23o site mais acessado nos Estados Unidos


Lançado em dezembro de 2004, o Digg.com afirma ter quase 445 mil usuários cadastrados. Esse número, de acordo com o próprio site, dobra a cada três meses. Nos Estados Unidos, é o 23º site mais acessado no país, segundo o Alexa.com, uma referência de tráfego na internet. É bem mais que páginas tradicionais dedicadas a notícias, como a Fox News ou a versão on-line do jornal Washington Post. O Digg.com é feito não pelo trabalho de jornalistas, mas pelos milhares de voluntários que publicam links com observações pessoais sobre os textos veiculados pela mídia tradicional ou em blogs. Seu idealizador, Kevin Rose, de 29 anos, comanda uma empresa avaliada em US$ 200 milhões. Desse total, 30%, ou US$ 60 milhões, são do próprio Rose. De acordo com os especialistas, o Digg já se destaca no meio on-line e promete sucesso semelhante ao do site de vídeos YouTube ou ao das comunidades virtuais do My Space.

O público do Digg é basicamente de homens (94%), na faixa entre 20 e 30 anos, com renda anual superior a US$ 75 mil. São um grande alvo para a propaganda. Mas o rendimento anual em publicidade do site ainda é pequeno: pouco mais de US$ 3 milhões. Para Rose, porém, é um tremendo sucesso. Ele investiu tudo o que tinha - até as economias reservadas para parte do pagamento de um apartamento - no que considerava uma grande idéia.

A origem dessa idéia foi o site Slashdot.org, fundado pelo programador americano Rob Malda, em 1997, quando ele tinha 21 anos. Foi o primeiro site construído com matérias enviadas pelos internautas. Os editores do Slashdot recebem diariamente centenas de sugestões de artigos.
Com isso, sites pequenos de notícia ganharam, da noite para o dia, audiência global. A massa de público pode ser tão grande que alguns computadores que os hospedam não suportam o número de acessos e saem do ar, fenômeno que foi batizado de "efeito slashdot". O Slashdot foi vendido em 1999 a uma empresa que, no ano seguinte, foi avaliada em US$ 1 bilhão. Hoje, o site pertence à OpenSource Technology Group e é a principal referência mundial para notícias ligadas ao mundo digital.
Cada colaborador do OhMyNews coreano pode ganhar atéUS$ 50 por artigo publicado
A idéia do Digg.com foi estender o modelo do Slashdot a todo tipo de notícia. Ela já havia sido tentada outras vezes. Agora, porém, o ambiente da internet estava mais propício. No universo conhecido pelo termo web 2.0, os internautas ajudam a construir o conhecimento, em vez de ser simples consumidores.

Um exemplo de onde esse modelo é seguido à risca é o OhMyNews, um jornal sul-coreano veiculado na internet em coreano e inglês. O lema do OhMyNews é: "Cada cidadão é um repórter". Colaboradores do mundo todo enviam reportagens sobre assuntos locais. Elas ganham a homepage do site de acordo com o interesse do público pelo tema - mas sem votação automática dos leitores. Cada colaborador do OhMyNews recebe até US$ 50 por reportagem aceita para publicação. O veículo afirma ter 43 mil "cidadãos-repórteres", 1.200 deles estrangeiros de cerca de cem países, que escrevem em inglês. Além de textos, o site veicula fotos, áudio e vídeos.

A brasileira Ana Maria Brambilla, de Toledo, no Paraná, se diz jornalista e cidadã-repórter. Ela escreve para o OhMyNews uma média de três reportagens mensais. "Acredito numa reformulação da profissão, com o jornalista nas funções de editor e mediador", afirma Ana. Ela desenvolveu sua tese de mestrado sobre o site de notícias e é professora universitária. O OhMyNews também tem uma edição impressa semanal, com 150 mil exemplares de tiragem e circulação exclusiva na Coréia do Sul, onde é amplamente prestigiado.

"Estamos diante de um movimento de mão dupla, que dá oportunidade para que as pessoas se manifestem", diz Jorge Rocha, professor de Jornalismo Digital da Universidade Fumec, em Minas Gerais. O projeto Participatory Journalism: Práticas e Papéis dos Jornalistas na Internet, conduzido na universidade, prevê para 2007 a criação de um site de referência em jornalismo participativo, com auxílio da sociedade. Até o lançamento, o projeto pretende manter o foco em duas frentes: analisar outros veículos semelhantes e repensar o papel do jornalista.
Será que dá para confiar em um jornalismo feito por qualquer pessoa? Como fica a credibilidade das informações, base dos órgãos tradicionais da imprensa? O grande trunfo do jornalismo virtual é justamente sua abertura. Ele funciona como uma janela. Qualquer um pode verificar e contestar a veracidade dos fatos. Além de os textos serem editados e checados por jornalistas, o que garante a idoneidade às notícias é o esforço coletivo. Qualquer um pode modificar o que foi publicado, como na Wikipédia, a enciclopédia virtual. Possíveis erros e imprecisões podem ser alterados rapidamente, num sistema em que as pessoas controlam os textos umas das outras. Isso dinamiza a confecção das notícias.
A imprensa participativa tem possibilidades únicas. Um exemplo: o que acontece quando pessoas inteligentes e equipadas com um laptop ou um simples celular com câmera se encontram no cenário de um desastre? Nos lugares perigosos e inacessíveis onde ocorrem os acidentes, esses cidadãos podem ser mais rápidos que qualquer organização jornalística, mesmo que não ofereçam uma visão abrangente dos fatos. As melhores fotos dos atentados no metrô de Londres, em julho de 2005, foram feitas por passageiros presos nos trens. Os primeiros relatos dramáticos dos bombardeios em Beirute foram postados por pessoas comuns. Seu grande valor é a autenticidade.
Os primeiros relatos dramáticos de Beirute foram postados por pessoas comuns sob bombardeio

Assim como esses cidadãos-repórteres podem estar em toda parte, eles também podem ser os mais bem postos para divulgar eventos e problemas locais. É o leitor quem escolhe o que é mais importante, abrindo espaço para temas que a grande mídia pode julgar de interesse restrito. Um texto publicado no OhMyNews na semana passada informava sobre uma campanha realizada pela ONG Acdic para estimular o cultivo de alimentos em Camarões, país que importa grande parte do que a população consome. Outra notícia mostrava os bonecos e materiais de propaganda de Andrés Manuel López Obrador.
Candidato derrotado nas eleições mexicanas, ele ainda contesta o resultado das urnas, mas sumiu do noticiário internacional. Havia ainda o relato do drama de uma garotinha indiana pobre com um problema congênito no coração. Uma ONG tenta arrecadar fundos para que ela possa ser submetida a uma cirurgia. Tudo isso teria pouco destaque na mídia tradicional.

O jornalismo participativo também é eficaz para divulgar assuntos de interesse restrito, como desenhos animados japoneses ou lançamentos da Apple. "Aos poucos, haverá maior oferta de informações para públicos específicos", afirma Jorge Rocha. Hoje, boa parte do jornalismo participativo ainda se concentra em notícias relacionadas à tecnologia, exatamente porque o público-alvo é muito ligado à internet. Mas isso pode ser apenas o começo.