terça-feira, outubro 16, 2007

O jornalismo colaborativo não ameaça a profissão do jornalista

Isabelle Anchieta de Melo (*)

O chamado jornalismo colaborativo, que se refere à produção de imagem e texto por pessoas comuns divulgadas em sites especializados, não ameaça a existência da profissão do jornalista. O nascimento dessa forma de produção coletiva de saber surge motivado pela emergência das novas tecnologias e do modelo em rede. O que implica dizer que o acesso portátil, sem fio e leve das tecnologias, como a câmeras digitais, celulares, computadores móveis e etc, além da acessibilidade econômica dos aparelhos produziu esse efeito.

Assim, as pessoas passam a ter acesso aos instrumentos técnicos para registro do real. O que implica também em uma mudança cognitiva, ou seja, em uma mudança na forma de compreender e pensar a realidade. Hoje a informação não é mais centralizada em uma autoridade, mas torna-se descentralizada. Assim, não trata-se mais da imposição de uma verdade, mas da apresentação das múltiplas faces do real. Surge, assim, uma série de sites que trabalham com essa lógica, sendo o Wikipédia, a enciclopédia livre, o melhor exemplo. Trata-se de uma enciclopédia virtual em que as informações sobre a palavra são forjadas em conjunto.

Assim, cada pessoa pode contribuir para levantar informações sobre o assunto. Assunto, esse, que pode ser atualizado diariamente, ao contrário do que ocorre com as enciclopédias impressas. O que o teórico Pierre Lévy denominou de "plasmopédia", no sentido em que o conhecimento torna-se vivo, em fluxo constante. Assim, se antes o conhecimento tinha um "prazo de validade maior" e era centralizado nas mãos de alguns (mestres e doutores do conhecimento), hoje, contrariamente, presenciamos um conhecimento volátil, efêmero e produzido de forma coletiva.

É nesse espaço, em que o conhecimento torna-se um fluxo ininterrupto e em rede, que assistimos a emergência do jornalismo colaborativo. Porém, sua chegada está sendo marcada, equivocadamente, por previsões catastróficas quanto à profissão do jornalista.

No entanto, há um recurso muito rico quando estamos diante de algo novo, que é, paradoxalmente, voltar ao passado. Assim, antes mesmo dos jornais impressos (que consolidam-se no século XVII) e do estabelecimento do jornalista como profissional existiam outras formas de divulgar a informação. As novidades circulavam na forma oral e todos eram passíveis a divulgar um fato. Dessa forma, todos "colaboravam" para a circulação da informação. No entanto, a inexatidão das mensagens e a falta de comprovação dos fatos foram, paulatinamente, conformando a figura que hoje conhecemos por jornalista. E, é a própria sociedade que demanda um maior cuidado no apuro dos fatos – o que implica no domínio de certos métodos e técnicas de observação que nem todos eram capazes de dominar. Nesse momento surgem pessoas que são escolhidas para relatar os acontecimentos. São eles chamados de mensageiros, apregoadores e trovadores. Os mensageiros eram controlados por reis e líderes e garantiam a apuração e a seleção das notícias. Os apregoadores, por sua vez, eram mensageiros performáticos, além de gritarem as notícias gesticulavam de forma espetacular. Já os trovadores transformavam, literalmente, os acontecimentos, em músicas.

A passagem dos "boateiros" aos "mensageiros" marca o início do desenvolvimento de um modo de observar o real que será efetivamente consolidado como área profissional e como profissão no século XVII - quando o próprio termo "jornalista" aparece pela primeira vez. Com a profissionalização é que serão criadas, também, uma série de técnicas jornalísticas, hoje consagradas, como: o lead, a pirâmide invertida, além das noções de imparcialidade e objetividade. Assim, o "jornalista" é resultado de um longo processo histórico para forjar pessoas capazes de selecionar da realidade atual o que deve ser conhecido.

E, para configurar-se como uma profissão o jornalismo passa a atender, então, a dois pressupostos: possui um conjunto de conhecimentos esotéricos ou específicos e é reconhecido socialmente. Ou seja, a sociedade delega e confia naquele profissional como o único capaz de produzir conhecimento credível . O que implica, por fim, na institucionalização do jornalismo como área de conhecimento tendo como conseqüência a exigência de uma formação superior.

Assim, o jornalismo colaborativo, possui, sim, uma rede de "informantes" e "colaboradores", mas não de "jornalistas". Pois, mesmo os veículos especializados em jornalismo colaborativo possuem jornalistas que irão filtrar e apurar a veracidade das informações que lhe são repassadas. O que se tem, então, é uma rede maior de pessoas que produzem informação e imagens, o que não implica em dizer que temos um número maior de jornalistas – que devem, sim, ter uma formação humanística e técnica consolidada – dada a sua responsabilidade social na divulgação das informações.

Podemos dizer, então, que assistimos, hoje, a uma rica interação entre jornalistas e público e não, como querem alguns, uma concorrência entre eles. Pois, tanto os jornalistas recebem mais informações como o público consegue dar visibilidade a questões do seu interesse mais próximo e imediato. Falta, ao meu entender, uma abordagem mais equilibrada da questão que perceba as matizes, as hibridações e inter-relações que são constituídas e não apenas em uma perspectiva de concorrência e supremacia de uma esfera a outra. Não há, a meu ver, quem sai ou quem fica no processo, quem perde ou ganha, pois se trata de uma troca. Uma troca, porém, em que há, sim, papéis distintos e que são ricos exatamente por serem distintos.

Os jornalistas ganham, nessa relação, ainda mais relevância na e para a sociedade de comunicação generalizada. Pois, hoje, frente ao "tsunami" de informações, temos cada vez mais necessidade de "selecionadores" ou "buscadores" de informação (o que explica, em parte, o sucesso do Google). Assim, os jornalistas funcionariam como "googles", selecionando e hierarquizando, do conjunto de informações existentes, aquelas que merecem destaque. São profissionais munidos de técnicas e capazes de identificar o valor da notícia (ou os valores-notícia). Mais do que o fim do jornalismo vamos assistir a sua consolidação e valorização na organização e seleção de acontecimentos publicamente relevantes.

(*) Isabelle Anchieta de Melo é mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) no curso de Comunicação Social - Fafich. É pesquisadora pela mesma instituição no grupo "Jornalismo, Cognição e Realidade" (JR), que tem como objetivo sistematizar, contextualizar e analisar as Teorias do Jornalismo. Foi apresentadora e editora do jornal da Globo em Minas Gerais. Repórter de documentários especiais pela TV Cultura (Rede Minas de Televisão). É professora de Teorias da Comunicação; de Estudos Avançados em Comunicação e Teorias do Jornalismo no Centro Universitário Newton Paiva.

1 Comments:

At 5:17 PM, Anonymous Anônimo said...

A maneira como é abordada a importância do jornalista para a sociedade cria uma retrospectiva para legitimar a profissão. Reflexão necessária para todos entender o que é ser realmente jornalista. Parabéns.

 

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